ARTIGOS:


1 - PSICOPEDAGOGO NÃO É PROFESSOR PARTICULAR
2 - A PIZZA
3 - PROJETO DE VIDA
4 - CASAMENTO: FUSÃO OU INTERSECÇÃO
5 - BÚSSOLA INTERIOR
6- PAIXÕES
7 - EU GOSTO QUANDO
8 - MULHERES, TRABALHO E STRESS

9- AFINAL, INCLUSÃO BENEFICIA QUEM? (02/05/2016)

 

 

1 - PSICOPEDAGOGO NÃO É PROFESSOR PARTICULAR 


Por incrível que pareça, ainda há pessoas que confundem as duas coisas.
Quando um professor particular consegue dar conta das dificuldades escolares de uma criança, não há necessidade de um psicopedagogo!
Há pais pagando mais caro (em geral, os honorários de um psicopedagogo são mais altos que de um professor particular) por um trabalho feito pela metade, pois quando o psicopedagogo se propõe a dar aulas particulares, a menos que ele seja licenciado naquela matéria (por exemplo, uma professora de português que tenha feito o curso de Letras na universidade), corre-se o risco de aquela matéria ser tratada com superficialidade, com o profissional não sendo preparado para sanar as DÚVIDAS do aluno, ou, como testemunhei recentemente, acabar ensinando conceitos e regras ERRADOS (eu vi: aula particular de português para aluno do Ensino Médio dada por psicopedagogo, que registrou no caderno do aluno, com sua letra, várias palavras em desacordo com a reforma ortográfica, por exemplo, com uso do trema).
Portanto, se o que o aluno precisa é reposição de conteúdos de séries passadas, fixação de conteúdos da série atual, ou sanar dúvidas, deve ser indicado um professor especialista para aquela matéria e série. Por exemplo, em caso de alunos do Fundamental II ou Ensino Médio, recomenda-se um professor com Licenciatura naquela disciplina (português, matemática, química, etc.). Em se tratando de aluno do Fundamental I, recomenda-se um professor habilitado em Pedagogia, com experiência naquela série.
Alguns alunos necessitam de um tutor, um professor particular que faça um trabalho diário de organização, tarefa de casa, preparação para as provas, realização de trabalhos, ATÉ QUE O ALUNO SEJA CAPAZ DE FAZÊ-LO DE FORMA INDEPENDENTE, sendo este um dos objetivos do trabalho do professor particular.
O trabalho do psicopedagogo consiste em avaliar a criança para descobrir onde o processo de aprendizagem foi descontinuado, onde se partiu, quando o aluno deixou de evoluir. A partir de métodos e técnicas específicos, o psicopedagogo vai provocar a mudança, fazendo o aluno avançar. Para isso são utilizados materiais diferentes daqueles usados na escola, procurando-se evitar o uso de cadernos, atividades impressas, pois são semelhantes aos materiais que o aluno já utiliza na escola, que geralmente são aversivos em virtude das associações que o aluno estabelece entre eles e suas dificuldades escolares. Podem ser usados jogos, softwares, dinâmicas, desenhos, histórias e uma infinidade de recursos lúdicos, que visam recriar o prazer em aprender, trabalhar habilidades envolvidas no processo, como atenção, memória, organização, técnicas de estudo, raciocínio lógico, criatividade, dentre outras.
Crianças em fase pré-escolar podem precisar de atividades que estimulem e desenvolvam as habilidades psicomotoras: coordenação motora, esquema corporal, orientação espacial, temporal e lateralidade. O psicopedagogo, desde que tenha experiência nessa área, poderá trabalhar estas dificuldades no consultório, ou indicar um terapeuta ocupacional, ou psicomotricista.
Crianças com dificuldades no processo de alfabetização também poderão ser ajudadas pelo psicopedagogo, novamente, desde que o mesmo esteja preparado para isso e que tenha experiência em alfabetização. Há muitos materiais interessantes que poderão ser utilizados, como softwares, jogos, que tornam o processo mais dinâmico e motivador para a criança (por exemplo, um material que gosto muito e costumo usar no consultório é o Método das Boquinhas: inúmeros jogos e atividades do método fônico de alfabetização, método que a ciência vem provando que é o mais indicado para alfabetização de todas as crianças, principalmente daquelas que têm dificuldades no processo de alfabetização).

Por estas razões, o psicopedagogo precisará ser um profissional atualizado em relação às novas tecnologias educacionais e também criativo, capaz de adaptar inúmeros materiais e técnicas para conseguir atuar junto às dificuldades do aluno de uma forma atraente, capaz de despertar a motivação, resgatar o prazer em aprender, promover a autoestima e fazer o aluno voltar a avançar em seu processo de aprendizagem, apropriando-se dele, tornando-se mais independente.


Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

2 - A PIZZA


Uma forma atual de se explicar o que é Qualidade de Vida é comparar nossa vida a uma pizza. Há pessoas que dedicam a "pizza toda" (a vida, o tempo, os recursos) a uma única meta, por exemplo, ao trabalho. São aquelas pessoas que vivem para o trabalho, que só falam de trabalho, que se esquecem das outras áreas da vida. Há outras que se dedicam de forma exclusiva ao casamento (ocorre mais frequentemente com as mulheres, talvez por fatores culturais que discutiremos num outro artigo), que após o casamento abandonam amigos, lazer, família, religião, para dedicar-se aos assuntos da casa, para cuidar do marido/esposa, etc.. Há também as pessoas que se dedicam exclusivamente à religião, que tornam-se obcecadas pela questão religiosa, aquelas que normalmente não conseguem conversar sobre outros assuntos ou que usam a religião para explicar todo e qualquer fato. Há pessoas que fazem do centro de suas vidas o culto ao corpo e à beleza física, cuja vida toda se organiza em torno deste objetivo, com muitas horas diárias utilizadas para esta finalidade, restando pouco ou nenhum espaço para outras áreas, para outras metas. Enfim, são aquelas pessoas que apostam todas as fichas em uma única área, excluindo as demais áreas ou deixando-as em segundo plano. Esta não é uma forma saudável de organizar a própria vida, pois se algo não der certo, por exemplo, se ocorrer a perda do emprego, o fim do casamento, a desilusão com a religião ou a perda da beleza física, fica-se sem chão para pisar, sem ter em que se apoiar. É como diz o velho ditado: "Não se deve colocar todos os ovos na mesma cesta".
Uma maneira mais saudável de organizar a própria vida, a própria "pizza", é dividi-la em várias fatias, de igual tamanho, deixando-se uma fatia para cada área da vida: área familiar, afetiva, emocional, profissional, social (que inclui os amigos, os grupos dos quais fazemos parte), lazer (aquilo que fazemos unicamente por prazer, diversão, para "recarregar a bateria"), área física (que inclui cuidados com a saúde, atividade física e cuidados com o corpo, com a aparência, alimentação, sono), área espiritual, área financeira (como administramos nossos recursos), sexual, intelectual (cursos, livros, novas aprendizagens, manter-se atualizado) e a área da cidadania (como contribuímos com nosso bairro, nossa cidade, nosso país. Aqui inclui-se o trabalho voluntário, cujo princípio é: existe algo que você possui ou que sabe fazer e que poderá ser útil a alguém que está precisando disso neste exato momento). Portanto, isto é Qualidade de Vida, esta divisão da pizza em muitas fatias, todas as áreas de nossa vida tendo um espaço e sendo igualmente consideradas e cuidadas.
Esta é uma forma mais equilibrada e saudável de gerenciar a própria vida porque quando ocorrer um problema com determinada área, teremos todas as outras para podermos nos apoiar. Por exemplo, a pessoa que perdeu o emprego não estará sozinha: terá a família, os amigos, a religião, o trabalho voluntário, o lazer, e etc., em que se apoiar. Fica inclusive mais fácil conseguir um novo emprego quando se participa de outros ambientes, quando se tem outros vínculos, uma rede de contatos.
E você, leitor? Como está a sua "pizza"? Quantos pedaços ela tem? Será que algumas áreas invadiram o espaço de outras? Será que o trabalho, por exemplo, ocupa um espaço enorme em sua vida, espaço este que está sendo roubado de outras áreas, que são igualmente importantes (família, amigos, lazer, etc..)? Será que há áreas que foram esquecidas, que estão como canteiros abandonados, não cultivados? O que fazer se este for o seu caso?
Abordaremos esta questão num próximo artigo, quando falaremos sobre Projeto de Vida, algo que poderá rearranjar sua "pizza" e dar novo sentido e organização à sua vida.
E não fique muito surpreso se nas próximas vezes em que for comer pizza começar a "pensar na vida" - ou se na mesa ao lado houver alguém muito pensativo olhando para a pizza recém servida...

 


Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

3 - PROJETO DE VIDA

 

No artigo anterior comparamos nossa vida a uma pizza, cada pedaço correspondendo a uma área de nossa vida, para explicar o que é Qualidade de Vida.
Mas o que fazer quando, ao avaliarmos nossa "pizza", constatamos que há poucas fatias? Que faltam fatias importantes (como espiritualidade, amigos, lazer, cidadania, etc.)? O que fazer quando determinadas áreas de nossa vida invadiram completamente o espaço pertencente a outras áreas, a outras "fatias", que ficaram "espremidas", ou que acabaram desaparecendo completamente? Por exemplo, aquele profissional que duas vezes por semana praticava esporte com os amigos e que após ser promovido na empresa (aumentando o número de horas trabalhadas), reduz para uma vez e depois para nenhuma?
Para organizar as coisas, vamos propor duas estratégias.
A primeira é uma avaliação bem simples. Você só vai precisar de papel e lápis. Tudo pronto? Então vamos lá. Você vai listar todas as áreas de sua vida: 1- FAMILIAR (inclui sua família de origem, pais e irmãos, e sua família atual, marido/esposa e filhos), 2 - AFETIVA (relacionamento amoroso), 3- EMOCIONAL (como administra suas emoções, como se sente: feliz, triste, deprimido, ansioso, etc.), 4 - PROFISSIONAL (sua profissão, se está satisfeito com sua área de atuação, com os resultados de seu trabalho, se tem uma carreira planejada), 5- INTELECTUAL (cursos, leituras, novas aprendizagens, manter-se atualizado), 6- SEXUAL (qualidade e quantidade), 7- FINANCEIRA (como administra seu dinheiro, como equilibra seu orçamento, como investe, poupa, planeja gastos), 8- SOCIAL (amigos, grupos aos quais pertence, eventos sociais aos quais comparece), 9- ESPIRITUAL (em que você acredita, se está satisfeito com suas crenças nesta área, com sua forma de viver e expressar estas crenças - o que não implica necessariamente em frequentar uma determinada religião ou igreja), 10- LAZER (aquelas coisas que você faz unicamente para se divertir, por prazer, diversão, para "recarregar a bateria": inclui hobbies, como dançar, fazer coleções, cantar, tocar instrumentos musicais, etc.), 11- CIDADANIA (as contribuições que você dá ao seu bairro, à sua cidade, ao seu país, o que você faz para ajudar o próximo, como você coloca aquilo que sabe ou que possui a serviço do próximo, de uma causa), 12 - FÍSICA (sua aparência, como está sua saúde, seus cuidados com alimentação, sono, exercícios).
Você vai agora atribuir uma nota, de zero a dez, a cada uma destas áreas de sua vida. Avalie sinceramente cada área e dê uma nota. Recomenda-se que você não seja nem crítico demais (dando nota zero a todas as áreas, por exemplo), nem otimista demais - ou presunçoso (dando nota dez a todas). Seja realista.
Você acabou de fazer um balanço de sua vida, um diagnóstico, que vai permitir-lhe saber como anda sua "pizza", quais as áreas críticas, o que está bom (e que, portanto, deve ser conservado) e o que precisa urgentemente ser melhorado.
Agora vem a outra estratégia: o Projeto de Vida.
Talvez você queira fazer seu Projeto de Vida por escrito (seria o mais indicado). Você poderá fazê-lo na mesma folha em que fez a avaliação, escrevendo brevemente à frente da nota que você atribuiu, ou poderá fazê-lo à parte (algumas pessoas preferem fazê-lo no computador - estas poderão me enviar um e-mail solicitando o Projeto de Vida já formatado, que só precisarão completar), de forma mais detalhada.
Após ter avaliado cada área, ter descoberto quais as áreas que precisam ser melhoradas, você poderá então determinar OBJETIVOS (o que você quer conseguir em cada área, como você quer que elas fiquem daqui a algum tempo), ESTRATÉGIAS (o que você vai fazer para conseguir atingir cada objetivo, para deixar cada área do jeito que você quer) e EVIDÊNCIAS (como você vai saber que atingiu seu objetivo: o que você precisa ver, ouvir, sentir, para concluir que realizou seu objetivo; que provas ou sinais precisará ter para certificar-se de que atingiu seu objetivo).
Por exemplo, imagine que na área do LAZER você vai listar três OBJETIVOS (é melhor ser bem específico e listar poucos objetivos para cada área: três é um bom número): 1- Aprender a tocar violão. 2- Sair mais com amigos. 3- Dançar. Você então poderá passar às ESTRATÉGIAS: para alcançar o objetivo número 1 (aprender a tocar violão), vou procurar um professor. Para alcançar o objetivo número 2 (sair mais com amigos), vou convidá-los mais vezes, aceitar o convite, quando eles convidam, e frequentar mais ambientes em que possa encontrar amigos (como clubes, por exemplo). Para o objetivo número 3 (dançar), vou entrar num curso e ir a lugares em que possa dançar.
Então vêm as EVIDÊNCIAS: "vou saber que atingi o objetivo número 1 (tocar violão) quando souber tocar uma música inteira olhando na partitura". Aqui é importante observar que é necessário que sejamos realistas e modestos nas evidências. Seria irreal, por exemplo, usar como evidência neste caso "ser um músico profissional" e "tocar numa orquestra ou banda". É preciso dimensionar bem os passos, como se eles fossem os degraus de uma escada. Também não serviria a evidência: "vou saber que estou saindo mais com amigos quando eu tiver um monte de amigos e tiver muitos convites" por ser muito vaga e inespecífica. Quanto é "um monte" de amigos? Quanto é "muitos convites"? Se eu não dimensionar, não vou saber quando atingi o objetivo. As EVIDÊNCIAS têm, portanto, a função de verificar quando o objetivo foi alcançado. É o sinal que confirma que chegamos lá.
Estabelecendo OBJETIVOS, ESTRATÉGIAS E EVIDÊNCIAS para cada área de sua vida, você terá concluído seu Projeto de Vida. E daí? É só isso?
Não, de forma alguma. Você precisará implantar o seu Projeto, o que significa que não há mágica e que você terá de arregaçar as mangas, pôr as mãos na massa e fazer o que precisa ser feito. E de tempos em tempos, precisará refazer seu Projeto, pois as metas alcançadas serão substituídas por novas metas, ou talvez existam metas que deixem de ser importantes e que precisem ser então descartadas. Portanto, o Projeto precisará ser atualizado periodicamente.
Uma pergunta frequente, quer no consultório, ou em cursos e palestras em que abordo este tema: um casal deveria fazer um único Projeto de Vida? Ou cada um faz o seu? Vamos responder a esta pergunta no próximo artigo, quando abordaremos a questão do casamento e dos papéis que desempenhamos na vida.
Há pessoas que afirmam: "Ah! Eu não gosto de planejar nada. Não gosto de me prender a projetos, gosto de ser livre, de ir ao sabor do vento". A estas pessoas gostaria de propor as seguintes perguntas: Ser livre é não planejar aonde queremos ir? Como diz aquela música "Deixa a vida me levar..."? Ou aquela frase "Se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve"? Ou ser livre é justamente o contrário: poder planejar e escolher para onde vamos? O que é afinal liberdade? É uma reflexão interessante, que retomaremos numa outra ocasião.


Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

 

 

4 - CASAMENTO: FUSÃO OU INTERSECÇÃO?

 

No artigo anterior, falamos sobre como fazer um Projeto de Vida e encerramos com a pergunta: um casal deve fazer um único Projeto de Vida, um Projeto que sirva para marido e mulher, ou cada um deverá fazer o próprio, individualmente?
Certamente, o leitor que acompanhou nossos artigos anteriores, em que enfatizamos a importância de dividirmos nossa "pizza" (nossa vida) em fatias iguais, saberá a resposta.

Algumas pessoas veem o casamento como um processo de fusão. Duas pessoas que se unem, que se fundem uma na outra, de forma a desaparecer o "eu" e daí para a frente só existe o "nós". Neste caso, trata-se de uma mudança profunda, não apenas no nível do comportamento, mas no nível da identidade. Veem-se como casal, não mais como pessoas, separadas, como se sua autoimagem também houvesse sofrido uma "mutação". Esquecem-se de como pensavam antes do casamento, que ideias tinham, que objetivos tinham. É como se tudo isso tivesse sido apagado e uma nova visão houvesse sido gravada por cima.
Uma outra forma de pensar o casamento seria compará-lo a um processo de intersecção. Lembre-se de quando estava na escola e a professora de matemática ensinava: o conjunto A tem como elementos as cores vermelho, amarelo e verde e o conjunto B tem como elementos as cores azul, amarelo e branco. Portanto, o conjunto intersecção é formado pela cor amarela (aquela que é comum aos dois conjuntos). E então a professora traçava um círculo em volta de cada conjunto de forma que um círculo entrava dentro do outro, justamente para representar o elemento (a cor amarela) que pertencia aos dois conjuntos ao mesmo tempo.
Um casamento pode ser entendido assim também. Duas pessoas que vão formar uma intersecção entre si (uma área comum, constituída de afinidades, de planos em comum, de coisas que serão compartilhadas) mas que não deixarão de ter intersecções com outras pessoas (afinidades, objetivos, hobbies), quer com amigos, colegas, pessoas com quem compartilhem sonhos, gostos, hábitos, por exemplo, os amigos do futebol, da academia, os amigos do curso de espanhol, do grupo de estudos, os torcedores do seu time favorito, etc.. E é bom que seja assim, pois tais intersecções permitem que cada um tenha novidades para compartilhar com o outro, experiências para serem trocadas, o que enriquece o relacionamento.
A esta imagem da intersecção vamos acrescentar ainda uma outra imagem: a das fatias da pizza. O que acontece com as fatias da pizza depois que uma pessoa se casa?
O ideal seria que cada um continuasse a cuidar das próprias fatias (amigos, lazer, espiritualidade, cidadania, trabalho, etc.) sem se esquecer, é claro, de cuidar da fatia do casamento. Porém lembrando-se que o casamento é uma das fatias - não é a pizza toda.

Todavia, você, leitor, já deve ter observado que existem pessoas que, ao se casarem, mostram-se extremamente vorazes em relação à pizza do companheiro: não se contentam em ser uma fatia na vida do outro, querem a pizza toda. Começam a "invadir" os espaços do outro (as fatias destinadas a amigos, esporte, lazer, família, etc.) e a tomar posse, a reivindicar estes espaços como seus. Chegam a exigir que o outro abandone hábitos, amigos, atividades, reclamando para si a atenção e o tempo que ele lhes destinava. O que é lamentável e destrói o amor. Transforma o amor, o casamento, em prisão. Cada um é condenado a viver para sempre e exclusivamente na presença do outro. Ficam acorrentados um ao outro. Acreditam que após o casamento deverão fazer absolutamente tudo juntos.
Rubem Alves tem uma história muito bonita sobre isso, A Pipa e a Flor. Na história, a pipa se enamora de uma flor e a ela entrega o fio em que está presa. Todos os dias a pipa voa para o alto e volta ao encontro da flor, cheia de novidades. Até o dia em que a flor, sentindo ciúme e inveja da pipa, decide encurtar o fio até prendê-la junto a si. É uma história que fala que o amor se nutre justamente da incerteza, dos espaços do outro que não me pertencem e que me fascinam, que me fazem querer conquistá-los. Pois quando nada mais houver por conquistar, quando não mais houver dúvidas se o outro poderá ou não voltar para casa um dia, acabou-se o amor. Segundo este ponto de vista, portanto, aquela velha ideia de um casal ir morar para sempre numa ilha deserta deve ser o equivalente mais próximo do inferno. Não seria romântico, seria terrível.
Logo, concluímos que uma pessoa, ao se casar, terá um novo papel em sua vida, o papel de esposa (marido), mas deveria continuar exercendo seus outros papéis: o de amiga de sua amiga, vizinha de sua vizinha, prima de sua prima, filha de seus pais, irmã, colega, aluna, professora, torcedora de seu time, esportista, cantora, poetisa, voluntária e etc. Mesmo quando nascerem os filhos, o ideal seria que não ficasse o tempo todo no papel de pai/mãe, até mesmo diante dos filhos. É bom para os filhos que eles percebam que não são donos de todo o tempo dos pais (a pizza toda), que os pais têm suas intersecções com outras pessoas, têm suas atividades e objetivos, e que os filhos não fazem parte de todos os seus momentos (assim como o cônjuge também não faz). O pai ou mãe que age assim fornece ao filho um modelo saudável de como gerenciar a própria vida, de como estabelecer vínculos saudáveis com pessoas, de como pertencer a vários ambientes. É aquele pai (ou mãe) que vai dizer ao filho: "Hoje não posso brincar com você porque vou sair com meus amigos. Mas podemos combinar para amanhã. O que você acha?". Ensinam um amor desapegado, que ama e confia, que permite ao outro ir e vir, que não reivindica espaços que não lhe pertencem. E, o mais importante, ensinam que os filhos não necessitam ter a pizza toda para que se sintam amados.
Portanto, recomenda-se que os casais façam um Projeto para o casamento, tracem planos em conjunto, para o casal, para a família, mas não deixem de ter cada um seu próprio Projeto de Vida, lembrando-se que além de marido/esposa, pai/mãe, cada um continua a ser uma pessoa, com direito a sonhos, objetivos, ideais, PAIXÕES.

No próximo artigo falaremos sobre a bússola interior, algo que nos guia, que nos mostra qual é nosso caminho, o que é bom para nós.


Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

 

 

 

 5 - A BÚSSOLA INTERIOR

Sabe aqueles momentos de sua vida em que você não sente o tempo passar? Ou em que parece que o tempo passou rápido demais e então você diz: "Ah! Que pena que já acabou"? Em que você fica melhor do que estava antes? Momentos que, logo depois, já o deixam com saudade, querendo em breve "repetir a dose"? E que fazem com que você se envolva completamente naquilo que está fazendo e, por alguns instantes, se esqueça de tudo o mais à sua volta?
Pode ser que você sinta isso quando vai ao cinema, ou quando pratica um esporte, ou quando se reúne com amigos, ou quando lê um bom livro, ou quando frequenta sua igreja, ou quando está com a pessoa amada, ou com seus filhos, ou quando está trabalhando (se você gosta do que faz).

Agora uma outra situação: sabe quando você faz uma escolha na vida (um emprego novo, um curso, uma compra importante, um relacionamento) e depois de algum tempo surge uma insatisfação, como se "seu coração" estivesse lhe dizendo que sua escolha não foi boa? Que aquilo "não é para você"? E então você desiste daquela escolha, muda o rumo das coisas, e daí seu coração se aquieta, se alegra? E você finalmente se sente em paz?
É como se, internamente, possuíssemos uma espécie de "bússola" que nos guia, nos orienta, nos mostra qual caminho é bom para nós. E ela faz isto justamente através de nossas sensações, da "voz do nosso coração", de nossas sensações de prazer e desprazer, de paz ou de inquietação, de realização ou insatisfação. É como se esta bússola fizesse com a gente aquela brincadeira do nosso tempo de criança: "Tá esquentando, tá quente... Ih! Esfriou..."
Observe como uma criança é totalmente fiel às suas sensações. Geralmente, ela se afasta rapidamente do que não gosta, aproveita intensamente o que gosta, e não tem dificuldades para distinguir entre as duas situações.
Ao longo dos anos, é comum nos distanciarmos destas sensações, que ficam como que desconectadas, alheias a nós, como se criássemos um abismo entre elas e nós. É frequente em psicoterapia encontrar pessoas desconectadas de suas emoções e sensações. São pessoas que às vezes se ferem sem gravidade e só o percebem bem mais tarde, ou que se esquecem de almoçar, de beber água quando estão com sede, de se agasalhar quando estão com frio. São também pessoas que colocam o bem-estar dos outros acima do seu próprio, que se preocupam em não deixar que o outro sofra mesmo que para isso ELAS tenham que sofrer. Que não dão atenção aos sinais de cansaço que seu corpo emite, ou às dores e sintomas que, na verdade, são recados do corpo, e cuja intenção é restabelecer a saúde e o equilíbrio. Por exemplo, às vezes uma dor persistente nas costas sinaliza hábitos inadequados, postura inadequada. Ou então problemas gástricos sinalizam uma alimentação que não faz bem àquela pessoa. Ou, às vezes, um problema de saúde qualquer sinaliza simplesmente que aquela pessoa está infeliz naquela situação. Lembro-me de um filme em que um jovem imigrante vai trabalhar em uma grande loja e, pela primeira vez na vida, começa a ter uma forte dor de cabeça, todos os dias. Depois de alguns meses vivendo este transtorno, ele pede demissão e a dor de cabeça sara no mesmo dia. Nunca mais ele tem dor de cabeça. Demorou alguns meses para que ele "ouvisse a voz do próprio coração" (e os recados do corpo) e tomasse uma atitude.
É comum que as pessoas fiquem "brigando" com a voz do coração. Por exemplo, quando se obrigam a fazer coisas de que não gostam, ou quando se obrigam a permanecer numa situação que há muito as desagrada: um emprego de que não gostam, um casamento que já não traz felicidade. Geralmente são pessoas que "se anestesiam" para não sofrerem muito e assim poderem ir sobrevivendo. Ou então compensam a insatisfação de outras formas: se atiram de cabeça no trabalho (para não pensar no casamento), ou na malhação, ou adquirem vícios (beber, fumar, etc.). O resultado é sempre insatisfação, infelicidade e distanciamento em relação às próprias emoções e, o mais importante, distanciamento em relação ao propósito de suas vidas, à sua razão de existir, à sua MISSÃO, um conceito que definiremos num artigo futuro e que, aqui, não tem conotação religiosa.
Outras consequências para uma pessoa que passou a vida toda andando na contramão do próprio caminho, do caminho ditado pelo seu coração, podem ser depressão, ou outro tipo de doença, amargura, desesperança, falta de vivacidade, de vibração e entusiasmo.
Retomamos agora a questão proposta em um artigo anterior: o que é liberdade? Liberdade é não ter planos e deixar que a vida nos leve ("Deixa a vida me levar...")? É ir ao sabor do vento? Ou liberdade é justamente o contrário: escolher para onde se quer ir (e batalhar por isso)? Podemos acrescentar a esta questão as ideias discutidas hoje e assim ampliar o conceito: talvez liberdade seja guiar-se pela voz do coração, pela bússola interior, para saber aonde ir e então poder fazer planos (ter um Projeto de Vida, como explicamos num artigo anterior) para chegar lá. É uma questão que nos convida à reflexão (e cujas conclusões aqui propostas não se pretendem definitivas, estando abertas à discussão).
E você, leitor, o que pensa a respeito? O que sente quando pensa nesta questão? Como tem usado sua bússola interior? Como lida com suas sensações e emoções? Dá atenção a elas, procura entender qual o recado que têm para você, ou procura anestesiá-las? Por exemplo, quando está triste (ou insatisfeito, ou com raiva, etc.), dá atenção a sua tristeza, procurando fazer algo em relação ao que a está causando? Da mesma forma, quando você sente algum tipo de dor, procura saber o que seu corpo está sinalizando (hábitos inadequados, falta de repouso, etc.)? Ou "passa batido", esperando que seu corpo "grite" para então tomar uma providência (por exemplo, deixando que a dor se torne insuportável para então procurar um médico)? Você se deixa guiar pela voz do coração? Confia nela? Tem se permitido bons momentos (aqueles em que não percebe o tempo passar)? Ou os bons momentos são raros (só nos finais de semana ou nas férias)? Tem a sensação de estar andando no "seu caminho", aquele que é bom para você? Ou sente que há muito se afastou dele?

Daremos continuidade a este assunto no próximo artigo, em que falaremos a respeito de PAIXÕES.

Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).


 

6 - PAIXÕES

 

Responda rápido e sinceramente: o que você tem feito em sua vida que lhe dá prazer? Com que frequência você tem tido momentos de prazer?
Vamos comparar estes momentos de prazer ao ato de respirar. Você é do tipo de pessoa que "respira" no final de semana, daí prende a respiração durante toda a semana e só volta a respirar no próximo final de semana? (Ou, o que é pior, daqui a um ano, nas próximas férias?)
Vamos agora pensar na palavra LAZER. Qual a importância que você atribui ao lazer em sua vida? Para você (como para muitos) lazer é supérfluo? É a primeira coisa a ser riscada da lista quando o tempo (ou o dinheiro) está escasso?
Pelo que você tem paixão em sua vida? Aquelas coisas que despertam seu interesse, que fazem você parar o que está fazendo para poder prestar atenção a elas, que fazem com que seus olhos brilhem, seu coração se alegre e seu rosto se ilumine? Pode ser que você se sinta assim em relação ao seu time favorito, ou em relação a algum hobby, ou algum assunto sobre o qual esteja muito interessado, ou em relação a pessoas de quem você gosta muito.
Há pessoas que respondem a esta questão da seguinte forma: "Não sei o que me dá prazer. Ultimamente não tenho feito nada que me dê prazer".
A incapacidade de sentir prazer é chamada de anedonia e faz parte de alguns quadros psiquiátricos, principalmente quadros de depressão. Neste caso, a pessoa deixa de sentir prazer, quer em novas atividades ou em atividades que antes eram prazerosas. É apenas um dos sintomas da depressão que, como se sabe, é uma doença que precisa ser tratada, geralmente com medicação ou psicoterapia, ou ambas - um profissional (médico ou psicólogo) é quem poderá avaliar a necessidade de cada caso.
Excetuando-se esta situação acima, em que a falta de prazer se deve a uma doença, há outros casos mais simples, dentre os quais a maioria de nós provavelmente se encaixa.
Numa primeira possibilidade, não é que não tenhamos capacidade de sentir prazer, mas sim que não estejamos nos permitindo momentos de prazer. Sabemos do que gostamos, mas por várias razões (por falta de tempo, ou de dinheiro, ou por acomodação, ou por medo, ou por timidez) não vamos em busca disso.
Uma outra possibilidade ocorre quando, ao longo dos anos, em virtude das obrigações que nos impomos, vamos restringindo nossos interesses, limitando nossa vida ao estritamente necessário, usando nossa energia para as tarefas que julgamos "importantes", e abandonando completamente aquelas consideradas "supérfluas" (lazer, prazer). Ficamos tão focados em nossas obrigações que nem percebemos o que está ao nosso redor. Daí alguém nos pergunta: "O que você achou da fachada daquele novo restaurante perto de sua casa?" E então respondemos: "Que restaurante? Não vi nenhum restaurante perto de casa". Não prestamos mais atenção às novidades. Olhamos e não vemos. Fazemos sempre os mesmos caminhos. Não nos entusiasmamos, não temos mais aquela curiosidade igual à das crianças, para quem tudo é interessante, tudo chama a atenção. Ficamos completamente "por fora" quando alguém comenta sobre um filme, um livro, um lugar, como se fôssemos de um outro planeta.
Esta estratégia poderia ser considerada como de sobrevivência, pois guarda recursos e energia para o que é essencial. Mas é uma estratégia equivocada. Pois sabe-se que um indivíduo que possui um leque de interesses variado tem maior probabilidade de lidar de forma satisfatória com o stress, tem menos depressão e menos problemas de saúde. Isto ocorre porque, tendo muitos interesses, terá maior probabilidade de ter momentos de prazer ao longo do dia (não apenas nos finais de semana). Estes momentos de prazer, que muitas vezes são breves, permitem que recarreguemos nossa bateria. Considere o seguinte: quando executamos tarefas (resolvemos problemas, superamos obstáculos), gastamos energia. Quando temos momentos de prazer, quando nos permitimos ir em direção àquelas coisas que despertam nosso interesse, repomos energia (recarregamos a bateria). Sendo assim, quem tem um leque de interesses maior, tem mais energia, está sempre com a bateria carregada.
Talvez você esteja pensando: "Meu leque de interesses não anda muito variado..." O que fazer? Ampliar o leque, é claro. "Mas como?" - você pode estar se perguntando. "Não sei do que gosto". Neste caso, uma alternativa seria experimentar novas coisas, a fim de descobrir aquelas que possam ser interessantes para você. Arrisque-se, ouse. Aventure-se por novos caminhos.
Os interesses que temos na vida funcionam como ímãs que nos atraem, que nos impulsionam, nos levam adiante, que nos motivam a sair da cama pela manhã todos os dias. Eles vão recheando nossa vida, alegrando-a, enfeitando-a, dando-lhe um colorido especial.
Aquelas pessoas a que nos referimos acima, que estão sempre com a bateria carregada, fazem ainda algo mais com o "leque" e com os "ímãs": vão intercalando as atividades do dia com breves momentos prazerosos. Por exemplo, se precisam ir de ônibus até o trabalho, certamente vão levar consigo algo que possa tornar a viagem mais agradável: um bom livro, uma revista, um CD Player, iPod ou mesmo um radinho de pilhas. Se o chefe solicitar um extenso relatório, elas farão várias pausas: vão navegar na Internet, vão à sala ao lado, conversar um pouco com o colega, vão tomar um cafezinho. Enfim, divertem-se com facilidade, gostam de muitas coisas, e assim garantem um suprimento constante de energia, de forma a poderem sair do trabalho com energia suficiente para enfrentar um outro compromisso. Bem diferentes daquelas pessoas que "mergulham no relatório" e só param quando conseguem terminá-lo - completamente extenuadas, sem energia para chegar em casa, conversar com o marido (esposa) e brincar com os filhos. Estas pausas, diferentemente do que se pensava há um tempo atrás, não "roubam" tempo do trabalho, pelo contrário, aumentam a produtividade. Tanto é que muitas empresas, sabendo disso, implantaram pausas após o almoço (com a possibilidade inclusive de tirar uma soneca), horário flexível, cabeleireiro no local de trabalho, sala de ginástica, etc.
Uma última sugestão: adquira o hábito de ter sempre uma fila de coisas interessantes para fazer quando tiver tempo. Isso significa que se você vai a uma livraria e vê um livro interessante, se puder, compre-o. Não use como desculpa "Ah! Eu não vou ter tempo mesmo..." Compre e reserve. Faça o mesmo com outras coisas: filmes, coleções, CDs, etc. Você pode colocar nesta fila, "mentalmente", outras coisas como lugares que você quer conhecer, cursos que deseja fazer. De forma que as coisas interessantes sejam sempre em maior número do que as horas de lazer que você tem (e você deve, precisa e merece ter muitas). Assegure-se de que em sua fila sempre existam muitas opções interessantes e prazerosas esperando por você. Tanto que se você ficasse um mês sem trabalhar, teria com o que se divertir todos os dias, não seria pego de surpresa ("E agora? O que eu faço?").
Hoje falamos de respiração, bateria, leque, ímã, fila... Sem contar que em artigos anteriores falamos sobre pizza, projeto, intersecção, bússola. Esperamos que a "bagagem" de recursos internos de cada leitor esteja sendo ampliada a fim de que tenha à sua disposição novas "ferramentas", que lhe permitam novas maneiras de ver a vida, resolver problemas, atingir objetivos e, é claro, ser feliz.

Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

 

7 - “EU GOSTO QUANDO...”

 Muitos casais compartilham da crença segundo a qual se deve ser absolutamente franco, apontar tudo aquilo que o outro faz e que incomoda, “discutir a relação”, como se estivessem sempre “dando choques” um no outro a fim de “corrigir” problemas e, talvez até, de “corrigir” o próprio parceiro.
Assim como muitas outras crenças que as pessoas têm com relação à vida e aos relacionamentos, e que costumam ser fonte de dificuldades, esta merece um trabalho de revisão e questionamento. Muitas destas crenças foram formadas quando não tínhamos maturidade suficiente para avaliá-las de forma crítica, tendo sido herdadas de nossos pais, inculcadas pela mídia, pelos modelos que a nossa cultura valoriza e até mesmo pelas histórias infantis que ouvimos quando crianças.
O primeiro ponto que é preciso ressaltar nesta forma de lidar com problemas é que ela é aversiva, causa stress, pode colocar o outro na defensiva, uma vez que ele poderá sentir-se criticado. Pode também gerar desejo de vingança, o que ocorre quando o que foi criticado começa a levantar o histórico do parceiro, lembrando-o de todas as vezes em que ele também se comportou de forma inadequada. E então a história pode se tornar uma bola de neve, ou mesmo um padrão no relacionamento a dois, uma sequência condicionada de eventos que ocorre automaticamente, sem que os parceiros se deem conta.
Além disso, esta estratégia geralmente não cria novos comportamentos adequados. Diríamos que, “com sorte”, ela talvez iniba os comportamentos inadequados, mas não cria nada em seu lugar.
A questão que se coloca é: será que tudo o que incomoda deve ser comunicado? Será que a comunicação verbal é a única estratégia para estes casos? O que acontecerá se não for comunicado? E, da mesma forma, o que acontecerá se for comunicado?
Estas verificações são importantes porque normalmente as pessoas ficam condicionadas a determinados processos de solução de problemas, ficam presas a eles de forma que sua criatividade fica completamente bloqueada, ou seja, acabam agindo do jeito que sempre agiram. às vezes nem param para observar que a estratégia que vem sendo adotada por longos anos nunca produziu resultados positivos.
Uma outra forma de lidar com comportamentos que desagradam é reforçar positivamente o comportamento oposto, se possível, no momento em que ele ocorre. Assim, se o marido se atrasou para o jantar, a esposa poderia, nos dias em que ele chega pontualmente, fazer um comentário positivo, que expressasse sua alegria por ele haver chegado no horário combinado.

Também em relação à vida sexual é possível usar a estratégia sugerida acima. É muito comum que os casais se critiquem com frases do tipo “Por que você nunca...”, ou então “Eu odeio quando...”. Mudando-se a frase, teríamos: “Eu gosto quando...”, sinalizando ao parceiro aquilo que é desejável, ao invés de cobrá-lo ou criticá-lo.
Desta forma, se o parceiro faz o que o outro pede, fica com a impressão de que está apenas repetindo algo que já fazia, que é capaz. Ou seja, sua autoestima é protegida. De forma inversa, quando o parceiro faz o que o outro exige e cobra, poderá ficar com a impressão de que está assinando uma confissão de culpa, concordando com a crítica e com a acusação de ser inadequado, incompetente, etc.
Muitas outras crenças são geradoras de conflitos entre os casais e merecem uma avaliação crítica, como, por exemplo: “os casais devem fazer tudo junto”, “não deve haver nenhum segredo entre marido e mulher”, “se não há ciúme, é porque não há amor”, dentre outras.
à guisa de conclusão, vale lembrar que, mais que um simples jogo de palavras, a estratégia aqui sugerida precisa se constituir numa postura diante da vida, num modo de ser no mundo, que não se restringe unicamente ao relacionamento afetivo, mas que se estende a todos os relacionamentos e situações.


Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).

 

8 - MULHERES, TRABALHO E STRESS

 

Vida pessoal X vida profissional: quando o descompasso se instala

As mulheres atualmente ocupam não apenas um maior número de vagas no mercado de trabalho, mas também melhores postos, com melhor remuneração, benefícios, autonomia e poder.
O perfil da mulher ocupadíssima e estressada é um tema bem atual, tanto que a mídia o vem retratando seguidamente, quer em filmes, novelas, propagandas, etc..
Até mesmo o mercado se adaptou a esse fato, com o oferecimento de produtos e serviços voltados para esse segmento específico, como, por exemplo, uma variedade infinita de serviços delivery, academias de ginástica que funcionam em horários especiais (algumas, 24 horas por dia), diversos profissionais que atendem na própria residência do cliente (manicures, dentistas, esteticistas), tudo isso objetivando facilitar a vida de quem nunca tem tempo, ampliando assim sua convivência com a família e o tempo que passa em casa.
Algumas empresas, cientes desse fato, proporcionam às suas funcionárias uma série de serviços no próprio local de trabalho, como salão de cabeleireiro, aulas de ginástica, creche, dentre outros.
Mas será que isso tudo tem sido suficiente? Como anda o nível de stress da mulher atualmente? Como fazem as que são bem-sucedidas na difícil tarefa de conciliar vida pessoal e profissional? Que estratégias são comprovadamente eficazes para controlar o nível de stress e garantir melhor qualidade de vida?

Afinal, stress é bom ou mau?

Vamos comparar o organismo humano a um elástico e o stress à pressão que é exercida sobre esse elástico, quer por fatores externos, como compromissos, atribuições, horários a cumprir, solicitações diversas, do ambiente profissional ou familiar, quer por fatores internos, relacionados aos pensamentos de cada um, à personalidade, conflitos. Esse elástico foi concebido para suportar pressões, todavia, quando as pressões tornam-se excessivas, o elástico pode dar sinais de que vai se romper.
Quando isso acontece, é preciso agir rapidamente, em duas direções principais: 1- diminuindo as pressões, através da racionalização do trabalho, da delegação de tarefas, da melhor administração do tempo, para citar algumas estratégias e 2- Cuidando da própria “elasticidade”, ou seja, do bem-estar físico e mental, dormindo horas suficientes, alimentando-se de maneira saudável, fazendo atividade física, tendo horas de lazer.
O stress faz parte de nossas vidas, fomos programados para viver com um pouco de pressão. Aquela ideia idílica de viver sob a sombra de uma palmeira, numa ilha deserta, provavelmente nos deixaria entediados (e, talvez, estressados. Sim, o tédio também pode causar stress! Assim como a felicidade, a paixão...).
Ocorre que muitas pessoas perdem o controle da situação e acabam sofrendo complicações advindas de níveis elevados de stress, tais como hipertensão, diabetes, hipoglicemia, problemas dermatológicos, cardíacos, digestivos, cefaleia, obesidade, diminuição da libido, problemas relacionados ao sistema imunológico (como, por exemplo, aquelas pessoas que estão sempre gripadas). Isso acontece porque o stress produz no organismo diversas substâncias (adrenalina, cortisol, dentre outras) cujo efeito logo começa a ser sentido.
Portanto, stress na dose certa pode ser bom, se funcionar como um impulso para ir adiante, em direção às nossas metas. Agora, se esse impulso vai ser como uma catapulta, partindo-nos ao meio, ou se vai funcionar como uma conexão de banda larga, aumentando nossa velocidade na realização de nossas metas, vai depender de cada um.

Por que algumas pessoas lidam bem com as pressões, enquanto outras sucumbem aos seus efeitos?

Pessoas bem-sucedidas no manejo das pressões e no gerenciamento do stress são aquelas que possuem resiliência, um conceito emprestado da engenharia de materiais para explicar a capacidade de resistir às pressões, uma certa flexibilidade, que é resultado de estratégias de pensamento internas, da história de vida de cada um, das crenças e aprendizagens anteriores.
Sabe aquela história da palmeira num dia de vento e tempestade? Ela se dobra, flexível, e por isso resiste. Já outras árvores, altas, fortes, porém inflexíveis, às vezes são derrubadas. É mais ou menos isso que ocorre com algumas pessoas. Por falta de flexibilidade e dificuldade de adaptação às mudanças ocorridas em seu entorno, sucumbem ao stress.
Além da resiliência, também as estratégias de enfrentamento garantem uma melhor administração do stress.

Quais as consequências de se misturar trabalho e vida pessoal/familiar?

Dificuldades podem ocorrer em ambas as direções: tanto quando os problemas de casa são levados para o trabalho quanto o contrário, quando os assuntos do trabalho acabam indo parar em casa.
É muito comum que marido e filhos reclamem do fato. Algumas vezes a convivência pode se tornar tão aversiva em casa a ponto dos familiares começarem a evitá-la, ou seja, começam a ficar mais tempo fora de casa do que dentro dela.
Há mulheres que não conseguem falar com o filho no nível dele, que se dirigem ao filho usando uma linguagem formal, que não sabem “descer do salto” para ficar no mesmo nível da criança.
Quando o casal não preserva o relacionamento, reservando um tempo somente para ambos, para saírem como “namorados” e fazerem coisas juntos, também costuma haver um distanciamento, inclusive sexual.

Que mágica fazem as mulheres que conseguem conciliar trabalho, marido, filhos, vida social e etc.?

Não há mágica. Todavia, vale ressaltar que sofrem menos de stress as pessoas cujo trabalho se constitui numa importante fonte de prazer. Não o encaram como sacrifício, “luta” ou “batente”. E porque gostam do que fazem, costumam ser criativas, o que constitui outro fator importante na prevenção do stress.
Pessoas criativas no trabalho costumam ter menos stress do que aquelas que meramente executam projetos, tarefas, etc. É preciso ter a sensação de poder influenciar os resultados do próprio trabalho, pois, caso contrário, pode-se incorrer numa situação de desamparo e desesperança.
Se por um lado não há mágica, por outro, há algumas estratégias que todos podemos aprender e aprimorar, através do exercício constante.

Linha imaginária

Por exemplo, há uma técnica bem simples que consiste em traçar uma linha imaginária entre o trabalho e a casa, dividindo-os de forma que um não interfira no outro. Para isso, é necessário condicionar hábitos simples, como:

1- Não trazer trabalho para casa.

2- Não atender ligações relacionadas ao trabalho.

3- Não ficar conectado à Internet o tempo todo, checando e respondendo e-mails contendo assuntos profissionais.

4- Não falar de trabalho em casa, principalmente durante as refeições.

5- Aliás, as refeições não podem ter cara de reunião. Precisam ser momentos prazerosos, de aconchego.

6- Chegar em casa e “tirar o uniforme”. Isso significa que é preciso deixar o lado “competente” no escritório. Em casa, vale rolar no chão com as crianças, ficar descalço e falar banalidades.

Relaxar e respirar

Aprender a relaxar ajuda, e muito, a restaurar as energias. Fazer meditação, Yoga, aulas de alongamento, são boas alternativas para esse objetivo.
Por exemplo, uma técnica de respiração diafragmática pode fazer milagres por sua saúde. Consiste, resumidamente, em respirar colocando-se o ar na região do diafragma (ou do abdômen, da “barriga”, para facilitar a localização), bem devagar, suavemente, demorando pouco na inspiração e demorando mais na expiração, quando expulsamos o ar. Para isso, pode-se contar até 5 na inspiração, e até 10 na expiração. Há outras variações, que inclusive associam técnicas de relaxamento muscular à respiração diafragmática e que poderão ser aprendidas com um terapeuta bem treinado.

Um leque amplo de interesses

Outro fator importante que deve ser destacado é que as pessoas que lidam bem com o stress são aquelas que têm um leque de interesses variado, gostam de muitas coisas, e permitem-se, ao longo do dia, pequenos prazeres, intercalando momentos de trabalho e prazer.
Pode ser uma pausa para um cafezinho, uma conversa rápida pelo telefone, uma visita ao colega na sala ao lado, uma busca na Internet de alguma coisa pela qual estejam muito interessadas.
Dessa forma, mantêm-se sempre com um nível de energia e disposição adequado, além de garantirem seu bom-humor. Vão recheando o dia com momentos agradáveis e, assim, recarregando a bateria. Não esperam se divertir só no final de semana – ou, o que é pior, só nas férias.

Fila do lazer

Um outro hábito saudável é a chamada fila do lazer (ou poderia ser do prazer, das coisas boas). Consiste em ir angariando, ao longo dos dias, coisas que são interessantes, mas para as quais não temos tempo naquele momento.
Pode ser que você entre numa livraria e encontre um livro muito bom, daqueles que dá vontade de ir para casa e ler até acabar. Todavia, naquele momento, você não tem tempo. Então, compre e reserve. Coloque na “fila” do lazer.
Faça assim com muitas outras coisas. Vá selecionando-as e colocando-as na fila – talvez apenas mentalmente, como por exemplo, uma viagem que você esteja planejando fazer, um restaurante ao qual deseja ir, etc. De forma que, quando finalmente chegar o momento de relaxar e ter lazer, você tenha muitas opções para se divertir.
De tempos em tempos, dê uma olhada na sua fila do lazer, como se fosse uma coleção que você gosta de admirar, arrumar e saborear. Vá “regando” seus interesses, seus planos e projetos.
Pessoas que lidam mal com o stress têm dificuldade para relaxar. São aquelas que quando chega o final de semana, ou quando saem de férias, não se divertem, ou sentem falta do trabalho. Não sabem desfrutar o dia.

O copo d’água

Esse exercício sugere que você imagine que, ao sair da cama pela manhã, todos os dias, você pegaria um copo d’água, cheio, levando-o consigo para todos os lugares e situações ao longo daquele dia e, detalhe muito importante, sem derramar nenhuma gota! Até o final do dia.
Para conseguir realizar essa proeza, você precisaria fazer todas as suas atividades de uma forma muito suave, com muita calma, pois, caso contrário, a água seria derramada.
Esse exercício é feito apenas na imaginação (ainda não conheci ninguém que o tenha tentado de fato) e tem por objetivo mostrar-nos que a água do copo é a nossa energia.
Se diante da primeira contrariedade do dia, que pode ser uma fechada no trânsito, uma cara feia logo ao chegar no trabalho, nos estressamos e perdemos o controle, derramamos a água do copo. Sem água no copo e tendo que aguentar até o final do dia, vamos usar uma energia de que não dispomos. É como usar o dinheiro do cheque especial: não é nosso e pagamos juros bem altos depois.
Portanto, aquela gíria que usualmente ouvimos por aí, “me economize”, tem lá seu fundo de verdade. Economizar-se é cuidar da água do copo.

A pizza

Outro aspecto importantíssimo no gerenciamento do stress refere-se à forma como as pessoas dividem o seu tempo entre todas as áreas de sua vida.
Comparando nossa vida a uma pizza, observamos que há pessoas cujas “pizzas” apresentam apenas um ou dois pedaços, por exemplo, trabalho e família. Essa não é uma forma saudável de administrar a própria vida porque ficam faltando outras áreas igualmente importantes, tais como: amigos, área intelectual, área espiritual, área financeira, lazer, área afetivo-emocional, área sexual, área física e a área da cidadania.
É preciso cuidar para que haja um equilíbrio, para que algumas “fatias” não invadam o espaço de outras, ou mesmo para que algumas fatias não sejam completamente suprimidas – o que é bastante frequente, por exemplo, com a área do lazer, que é a primeira a ser descartada quando as coisas ficam difíceis, ou também com a área física, que inclui exercícios e cuidados com o corpo e a saúde, que acabam sendo relegados ao abandono em virtude da falta de tempo ou de dinheiro.

Transformar a casa em um santuário

Isso significa que precisamos preservar nosso lar, as pessoas e as coisas de que gostamos, das pressões oriundas do trabalho. É quase uma questão de “higiene”, por assim dizer. Semelhante ao hábito dos orientais, que tiram os sapatos antes de entrar em casa.
Em nosso lar merecemos calma, descanso, aconchego, merecemos desfrutar das coisas de que gostamos (lembra-se da fila do lazer?).
É nesse espaço sagrado que vamos nos refazer e pensar sobre nossa vida, sobre todas as suas áreas (a pizza).
Até porque ao nos distanciarmos de nossos problemas profissionais, colocamo-nos numa meta-posição, ou seja, podemos avaliá-los de longe e assim observar outros aspectos que antes não haviam sido considerados, porque estávamos muito envolvidos, submersos ou com a visão prejudicada em virtude da proximidade excessiva. É dessa forma que muitos insights acontecem, quando então gritamos “heureca” e então a solução salta diante de nossos olhos.

“Minha vizinha trabalha 12 horas por dia e ainda acha tempo para fazer um monte de coisas, como ginástica, ir ao cabeleireiro, passear com os filhos. E está sempre tão bem, parecendo feliz! Como ela consegue?”

Na verdade, o que pode estar ocorrendo aqui é aquele famoso fato de a grama do vizinho parecer sempre mais verde que a nossa...
Mas, admitamos, é possível que essa mulher conte com uma equipe de funcionários eficaz (empregadas, babás, etc.) e que saiba administrar bem o seu tempo.
É possível também que ela empregue as estratégias que foram aqui descritas e que sinta prazer nas coisas que faz, que mantenha um bom equilíbrio entre a energia que gasta e aquela que repõe.



Bibliografia recomendada:


Administrando o Stress com técnicas de Programação Neurolinguística. Maria Amélia Vallin de Oliveira, Editora Gente, 1996.

Administre bem o seu tempo. Rosa R. Krausz, Artenova, 1986.
Felicidade. Eduardo Gianetti, Companhia das letras, 2002.

 

 Nelly Penteado é psicóloga, psicoterapeuta, Master Practitioner em Programação Neurolinguística (SBPNL), pós-graduada em Terapia Comportamental e Cognitiva (USP) e em Psicopedagogia (UNICAMP).


 

9 - AFINAL, INCLUSÃO BENEFICIA QUEM? (02/05/2016)

Nesta semana, assim como em outras, atendi várias mães e pais de crianças com dificuldades. Não vou chamá-las de especiais porque todas as crianças são especiais, não vou chamá-las de pessoas com deficiência, como, aliás, é o termo correto atualmente, porque meu trabalho com elas é buscar potencialidades, talentos, como eu sempre digo, ajudar a subir o próximo degrau da escada de cada uma delas. Assim, mantenho o foco na força de cada uma. 

A trajetória destes pais muitas vezes é longa e dolorosa, pois passa pelo preconceito social, pela rejeição que acontece nas próprias escolas, que sutilmente, ou declaradamente, recusam-se a aceitar alunos com dificuldades, chegando até mesmo a sugerir sua saída. Imaginem a dor de um pai, a dor de uma mãe, cujo filho é sumariamente descartado porque "não tem o perfil da escola", "não apresenta os pré-requisitos necessários", ou porque “há reclamações por parte dos outros pais” (em virtude de suas características), ou porque “os professores não estão preparados”, ou “não têm tempo de preparar materiais adaptados”, além de uma série de outros motivos que, na verdade, deixam claro que aquele aluno não combina com o objetivo daquela escola, que se comporta como empresa, que prioriza sua imagem no mercado, que pensa mais em números (todos eles: classificação em vestibulares, número de alunos, capital investido, etc.). Escolas que trabalham como se a educação fosse uma linha de produção, cada série padronizada, todos os alunos tendo que andar juntos. Só possuem uma única “fôrma”, a qual aplicam indiscriminadamente a todos os alunos, independentemente de suas características pessoais. E assim certificam seus alunos, que saem da escola com uma espécie de “selo de qualidade”.

Nesse processo, venho observando algumas coisas muito interessantes. Primeiro, me pergunto se é Deus quem escolhe os pais exatamente perfeitos para estas crianças com dificuldades, porque tenho encontrado pessoas maravilhosas, com corações repletos do mais puro amor pelos seus filhos, batalhadoras incansáveis, otimistas, que não medem esforços para ajudá-los. Entretanto, daí me ocorre uma segunda pergunta: será que foi Deus quem colocou estas crianças na vida destes pais tão especiais, ou será que foram justamente estas crianças que, ao surgirem na vida deles, causaram transformações tão profundas, tornando-os pessoas muito diferentes, com uma outra visão em relação ao mundo, às pessoas, ao amor e ao que realmente é importante? A resposta eu não sei, mas me atrevo a supor, e deixo que cada um pense por si e formule suas próprias conclusões. 

Trabalhar com crianças com dificuldades, algumas delas chamadas "de inclusão", tem me ensinado diariamente muitas coisas. A mais importante delas é que precisamos ter um olhar inclusivo em relação às próprias escolas (e profissionais, pais, familiares), aceitando o fato de cada uma estar num degrau em relação à capacidade de tolerância, de flexibilidade, criatividade, amor e aceitação. Precisamos focar no que estas escolas têm de bom e fazê-las evoluir (exatamente como fazemos com as crianças com dificuldades), das mais variadas maneiras (algumas suaves e amorosas, outras firmes e assertivas), direcionando aos alunos com dificuldades aquilo que elas podem oferecer de bom e incentivando-as a desenvolver os recursos e habilidades que lhes faltam. Aliás, não é exatamente assim que deveríamos agir em relação a tudo, às outras pessoas e até em relação a nós mesmos, às nossas próprias dificuldades? Tolerância é uma virtude e uma atitude que se pode desenvolver.

As escolas que se abrem a esta experiência (felizmente temos várias!), que têm uma visão ampla em relação à educação, ao mundo, também se transformam profundamente nesse processo. Tornam-se mais acolhedoras, mais humanas, praticam a tolerância em seu dia a dia, de forma que o seu fazer combina com o seu falar, como dizia Paulo Freire. Logo, sou levada a pensar que talvez a resposta à pergunta que  formulei anteriormente seja essa: sim, as crianças com dificuldades vêm a este mundo com a missão de nos transformar, de tirar cada um de nós de nossa visão de mundo egocêntrica, polarizada e prepotente, de fazer com que sejamos capazes de enxergar em outras dimensões, para longe dos condicionamentos sociais viciantes. Não é uma experiência para a qual todos estejam preparados. E aí entra o olhar inclusivo, a tolerância em relação a quem ainda não está nesse degrau...

Lembro-me de um pai (nomes e detalhes omitidos para preservar a identidade dos envolvidos) que estava trazendo a família para morar em outra cidade e cujo filho era excelente aluno. Este pai visitou praticamente todas as escolas particulares da cidade, pois queria conhecer a proposta pedagógica de cada uma. Em determinada escola, perguntou ao profissional que o recepcionava como aquela escola lidava com a inclusão, se havia muitos alunos com dificuldades na escola e na classe em que seu filho estudaria, ao que o profissional respondeu rapidamente (talvez supondo que o pai estivesse preocupado com a possibilidade de seu filho excelente estudar em uma classe cujos alunos não estivessem em igual nível) que o pai poderia ficar tranquilo, pois aquela era uma escola que obtinha os melhores índices de aprovação em vestibulares e as melhores notas em exames nacionais, referência em relação à qualidade de ensino, motivo pelo qual não contava com muitos alunos considerados de inclusão, uma vez que, infelizmente, não conseguiam acompanhar seu alto nível de exigência.  O pai educadamente agradeceu e disse que aquela escola, apesar de excelente, não tinha o perfil ideal para o seu filho, que já sabia como aprender, como adquirir os conhecimentos de que precisaria na vida. Acrescentou que ele e sua esposa esperavam que a escola pudesse ensinar algo mais do que conteúdos cobrados em vestibulares. E se retirou. 

Em outros países, a educação totalmente inclusiva, que se adapta às características de cada aluno, já é realidade. Para citar apenas um exemplo, temos a Escola da Ponte, em Portugal. Esta escola trabalha por projetos (não há ciclos, ou séries, nem disciplinas, provas), que são traçados de acordo com o perfil, nível de habilidades e com os interesses de cada aluno. Os alunos se organizam em grupos, de acordo com seus interesses e projetos. O professor tem o papel de ser um orientador nesse processo. Nas palavras de Rubem Alves, “As crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela sala imensa.” (Rubem Alves, A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, Papirus Editora, Campinas, SP, 2001 e Edições Asa, Porto, 2001). Os alunos com dificuldades e também os que apresentam deficiências integram os mesmos grupos e participam das mesmas atividades que os demais, de acordo com a filosofia da escola. Trata-se de uma escola pública, com estudantes de diversas classes sociais. O mais curioso é que há famílias que se mudaram de outras regiões do país só para permitir aos filhos a possibilidade de frequentar esta escola – prova maior de que uma escola que sabe trabalhar de forma inclusiva, que se adapta às características do aluno (e não o inverso), pode ser enriquecedora a todos os alunos.

Nem sempre o primeiro aprovado no vestibular de medicina da universidade federal mais concorrida será o melhor médico. É possível que ele tenha completo domínio de todos os conteúdos acadêmicos vistos até então, mas que seja incompetente e completamente ignorante em relação à capacidade de empatia, que não saiba ser flexível e desconheça como ajustar o seu ritmo ao ritmo de outras pessoas, o que pode dificultar o trabalho em equipe, especialmente quando houver pessoas com perfis diferentes do seu (pessoas com dificuldades, ou de outras culturas, outras formas de pensar e ver o mundo). É preciso preparar o aluno para ser cidadão do mundo, adaptável a qualquer lugar, cultura, costumes e pessoas. E não é inscrevendo alunos em torneios estudantis super famosos que se consegue isso. Muito menos em visitas esporádicas a instituições que cuidam de pessoas em situação de vulnerabilidade. O aluno precisa estar envolvido pessoalmente em projetos em que possa praticar a tolerância, o respeito às diferenças, adquirindo assim um vasto repertório de comportamentos e habilidades.

Durante a graduação no curso de Psicologia, fui estagiária em uma empresa multinacional muito conceituada. O departamento em que eu cumpria meu estágio fazia seleção de funcionários e também acompanhava funcionários com problemas de desempenho e adaptação. Lembro-me da nossa decepção após selecionarmos candidatos cujos currículos eram excelentes e que, todavia, durante a entrevista, ou durante a dinâmica de grupo, eram reprovados porque eram arrogantes, prepotentes, individualistas, não sabiam trabalhar em equipe. Ou mesmo quando alguns excelentes candidatos, após serem contratados, mostravam-se totalmente ineptos no relacionamento interpessoal, o que comprometia a qualidade de seu trabalho na empresa e às vezes acabava levando-os à demissão. Tristes desfechos de excelentes alunos de escolas igualmente excelentes, que priorizaram a qualidade do ensino, a quantidade de conteúdos transmitidos, mas que falharam no ensino da solidariedade, da empatia, da ética e da cidadania. Não que caiba apenas à escola a missão de educar, mas ficávamos nos perguntando como aquele aluno passou por todos os anos escolares sem que ninguém suspeitasse de que algo muito errado estivesse acontecendo, sem que nenhuma medida corretiva fosse adotada.

à guisa de conclusão, podemos afirmar que a inclusão, vista de forma abrangente, é uma experiência enriquecedora a todos: às escolas, aos professores, aos demais alunos (os chamados “típicos”, que não apresentam dificuldades) e aos alunos com dificuldades. É imperioso que as escolas se atualizem e percebam que, no futuro, somente sobreviverão aquelas que tiverem foco no processo de aprender, e não no conteúdo, na formação moral para a diversidade em todos os aspectos, e não na "uniformidade". Somente assim estaremos caminhando para um mundo mais tolerante e inclusivo, mais preparado para aceitar as diferenças. Vamos torcer para que nossas escolas acompanhem essas mudanças, se reciclem e se preparem para estes novos tempos. 

 


 

 
 
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